“Black Mirror” já foi considerada uma das melhores antologias de ficção científica da atualidade. Ou será que isso ficou no passado? Após tantos anos, é fácil perder a originalidade e cair em repetições. Será que a série ainda consegue surpreender o público, ou já esgotou suas ideias? Vamos analisar isso neste artigo.
Será que “Black Mirror” perdeu a qualidade? É uma pergunta complexa. Ouvi opiniões de que a série nunca mais alcançará o nível de dramaturgia do primeiro episódio, aquele com o primeiro-ministro e o porco. Curiosamente, aquele episódio nem tinha um grande elemento de ficção científica, mas definiu o tom geral. “Black Mirror” não é apenas sobre tecnologias que mudarão nossas vidas de forma trágica, mas também sobre choque, reviravoltas inesperadas, comentários sociais incisivos e a proximidade de um futuro fantástico que nos é apresentado.
Tecnicamente, a sétima temporada apresenta todos esses elementos. Alguns episódios são mais focados em ficção científica, outros em comentários sociais. Na minha opinião pessoal, apenas metade dos episódios foram bem-sucedidos: o primeiro, o quinto e o sexto. Os demais são mais fracos. E a temporada como um todo tem alguns pontos problemáticos.
Primeiramente, as histórias se tornaram muito previsíveis. Os roteiristas quase esfregam os famosos “gatilhos” na cara do espectador. Vemos um “OnlyFans trash” e logo fica claro que o protagonista usará isso para ganhar dinheiro. Em outro momento, um supercomputador é apresentado supostamente “de passagem”, e já sabemos que ele será hackeado. Apenas “Kallister” conseguiu me surpreender.
Em segundo lugar, há uma forte sensação de que a série está se auto-repetindo. Talvez isso fosse inevitável – é muito difícil criar uma antologia onde cada episódio seja completamente original. Mas, neste caso, os temas não apenas ecoam temporadas passadas, mas também se repetem dentro da própria sétima temporada.
Temos três histórias de amor, e todas as três são de alguma forma dedicadas à perda de um ente querido e aos métodos de alta tecnologia para lidar com a morte. Mais três episódios se passam em realidade virtual, e dois estão intimamente ligados a videogames e destinos de NPCs, e mais dois com inteligência artificial e cópias digitais de pessoas.
Sinopse de Episódio
No centro da história está um casal modesto, mas feliz. A esposa está à beira da morte devido a uma doença cerebral. O marido concorda em realizar uma operação experimental que salva a vida da mulher, mas a conecta a um serviço em nuvem. Tudo tem um preço.
De todos os episódios da sétima temporada, este é o mais “Black Mirror”. Aqui, as tecnologias mais plausíveis se entrelaçam com as já existentes. O lema cyberpunk “High Tech, Low Life” está em plena evidência. E fica claro como um milagre se transforma em maldição.
O episódio satiriza os serviços de assinatura que todos conhecemos: “Plus”, “Premium”, “Prime” e etc. A tecnologia que substituiu a parte danificada do cérebro da protagonista exige uma mensalidade de $300. E se você pensa que todos os americanos são ricos e R$1500 não é nada para eles, está enganado.
No entanto, os gastos adicionais, que forçam os personagens a trabalhar mais, são apenas o começo. A assinatura muda constantemente. A esposa começa a ser bombardeada com publicidade contextual. Para desativá-la, é preciso pagar $800. E então a empresa começa a usar o poder de computação do cérebro dela, fazendo com que a mulher durma quase o dia todo, mas sem descansar. Para recuperar sua própria vida, ela terá que desembolsar $1.800 por mês. E isso sem falar dos problemas secundários gerados pela assinatura.
O que mais me agradou foi a linha romântica. Histórias de conto de fadas e comédias românticas sobre borboletas no estômago são bonitas e divertidas. Mas um homem e uma mulher que passam pelo inferno juntos e ainda permanecem leais um ao outro, isso inspira respeito.
Sinopse de Episódio
Uma mulher reencontra uma ex-colega de escola no trabalho. Com o tempo, ela percebe que algo estranho está acontecendo, mas os outros não notam.
Existe um gênero específico de cinema paranoico onde o principal conflito e o principal vilão é a mente do protagonista. Ele, e o espectador junto, não conseguem distinguir a realidade da ficção. Aqui, podem habitar um narrador não confiável e outras técnicas de narrativa avançadas.
No entanto, em “Objeto de Repulsa” não há técnicas avançadas. O que está acontecendo fica claro imediatamente. Também é óbvio por que isso está acontecendo, e não há razão para duvidar da sanidade da protagonista, pois a solução é simples, embora fantástica.
A colega de classe da protagonista era uma pária e gênio da computação na escola, e adivinhe quem a intimidava. Essa mesma colega de classe encantou todo o coletivo da protagonista, enquanto esta começou uma série de infortúnios. A pobre coitada começa a duvidar da sua sanidade mental, parece que a própria realidade ao seu redor está mudando. Os nomes não são os que ela se lembra. Os eventos acontecem de forma diferente do que ela acreditava.
Em qualquer outra situação, este seria o início de um thriller psicológico. Mas aqui fica claro imediatamente que a colega de classe está literalmente mudando a realidade, e não há esquizofrenia. O único ponto positivo da história é o final absurdamente idiota.
Sinopse de Episódio
Uma empresa inventa uma nova forma de refazer filmes. Eles literalmente colocam uma celebridade moderna no mundo virtual de um filme antigo.
Você vai gostar deste, eu garanto. Um episódio sobre como, em um filme clássico, o protagonista é substituído por uma lésbica negra*. Bem, se “Pessoas Comuns” foi o máximo de “Black Mirror”, então “Hotel ‘Sonho’” é o máximo de “Netflix”.
Uma atriz popular está insatisfeita com seu papel e se considera muito talentosa (o que não é nada verdade). Por isso, ela concorda em interpretar um papel originalmente masculino em um remake de seu filme favorito. Só que ela não leu os detalhes da proposta, e a equipe de filmagem, por algum motivo, decidiu filmar não só sem ensaios, mas também sem discutir nada com a estrela (que tolice, faltam-me palavras, e olha que eu sou falador).
Sem explicar nada direito, eles jogam a heroína no filme, como em “Creepshow”, ou em “Pleasantville”, ou em “O Último Grande Herói”, ou em qualquer outro lugar. Para que o filme seja bem-sucedido, a atriz não precisa apenas dizer suas falas, mas manter o “nível de atração” com o interesse amoroso, a “integridade do mundo” e alguns outros termos inventados na hora, que, repito, ninguém explicou a ela.
É claro que tudo dá errado. A trama se desenvolve incorretamente, a atriz de IA ganha autoconsciência, a protagonista fica presa no mundo virtual e, claro, o romancezinho que nós e nossos amigos do Roskomnadzor totalmente desaprovamos.
É infinitamente irônico que em todo o episódio os personagens parecem estar lutando contra furos no roteiro, enquanto sua própria história é um verdadeiro pesadelo para um tripofóbico. Filmagem sem ensaio, falta de explicação da tecnologia para a atriz, limite de tempo tirado do nada (eles poderiam literalmente ligar sua máquina infernal em qualquer lugar, mas por algum motivo alugam um pavilhão), uma atriz supostamente profissional e infinitamente burra, uma explicação absurda de autoconsciência. E tudo para quê? Para mostrar uma versão ruim de “San Junipero”?
Sinopse de Episódio
A polícia interroga um suspeito excêntrico de assassinato que está de alguma forma ligado a um jogo revolucionário dos anos 90.
Tudo começa bem em “Brinquedo”. Embora, talvez, apenas para mim. Por razões inexplicáveis, a imagem de um jornalista de jogos antissocial, amigo de NPCs, me pareceu mais próxima do que a imagem de uma lésbica negra* rica e bem-sucedida.
Ao longo do episódio, o protagonista conta o que o liga a um assassinato não resolvido de 1994. Acontece que, naquela época, ele trabalhava em uma revista para a qual escrevia sobre videogames. Um dia, ele foi convidado para uma prévia fechada pelo famoso designer de jogos Colin Ritman, o mesmo de “Bandersnatch” (ou “Brandashmyg”). Não há ligação especial com o filme interativo, no entanto. Mas aqui ele novamente atua como uma espécie de alavanca narrativa para o protagonista.
Ritman criou um videogame único, que não é um jogo, mas uma verdadeira forma de vida digital auto-desenvolvida. O protagonista sentiu uma conexão com as criaturas de pixel, as sequestrou, encontrou uma maneira de se comunicar com elas (o que nós, aliás, também desaprovamos) e acabou dedicando toda a sua vida a servir seus novos amigos.
O conceito em si é interessante, e Peter Capaldi e sua versão jovem desempenham seus papéis de forma excelente. Infelizmente, o final cria um buraco que engole toda a trama.
Atenção, spoiler!
O protagonista, por ordem de seu Tamagotchi, assume o controle do principal supercomputador do país. Para isso, ele mostra algo como um código QR para uma câmera de vigilância na sala de interrogatório. A pergunta é: por que ele não poderia ter mostrado para qualquer outra câmera na cidade? Ou, na pior das hipóteses, tatuar um código na testa?
Além disso, sente-se como o episódio tenta jogar com a nostalgia: “Oh, veja – Doom”, “Oh, veja – Road Rash”. Por algum motivo obscuro, o protagonista compra para upgrade não componentes de PC, mas consoles, porque “eles são muito mais poderosos”. E também não consigo acreditar em um jornalista de jogos que penduraria um pôster do Atari Jaguar acima da cama.
Sinopse de Episódio
Um homem descobre a morte de uma velha conhecida. Os organizadores do funeral oferecem a ele para fazer gravações de memórias para mostrar na cerimônia.
Um episódio único, muito bom. É praticamente um monólogo de Paul Giamatti. E se alguém não sabe, ele é um ator muito talentoso.
Então, a falecida não é apenas uma conhecida do protagonista, mas sua amada, o amor de sua vida. Só que eles se separaram há muito tempo e não da melhor maneira, então ele não consegue se lembrar do rosto dela. Um assistente virtual e uma tecnologia que permite entrar em fotografias são chamados para ajudar a restaurar as memórias.
Gradualmente, passo a passo, descobrimos como os jovens se conheceram, começaram a namorar, foram morar juntos. E como eles se separaram. Mas descobrimos tudo isso exclusivamente do ponto de vista do protagonista. Através do véu do ressentimento, da dor e da autocomiseração. Mas como seria diferente, certo?
Embora esta seja, sem dúvida, mais uma, a terceira, história de amor, o amor em si não é o foco principal aqui. Eu diria que é uma história sobre cura. Entendo que soe grandioso, mas essa analogia se encaixa perfeitamente. A separação deles – tola, emocional e incompreendida – é como uma ferida não tratada na alma. Com o tempo, ela inflamou e infeccionou, transformando um jovem alegre em um velho sombrio. E todo o processo de “Luto”, de restauração de memórias, é a abertura dessa ferida. Um procedimento doloroso, que no final traz alívio com um toque de amargura doce.
Atenção, spoiler!
Neste ponto, minhas habilidades líricas se esgotaram, então voltarei ao lamento. Eu entendo por que a separação foi assim, a trama precisava disso. E tenho certeza de que na realidade isso também acontece com frequência. Mas isso não exclui a tolice da situação. Um, recebendo algo como uma recusa, cortou o contato, sem nem tentar entender o que aconteceu. A segunda apostou tudo em um bilhete, que deveria ter sido notado por uma pessoa ressentida e bêbada. E também cortou o contato.
Pessoas! Para transmitir um pensamento a outra pessoa, é preciso usar palavras. Seres humanos começam a aprender a falar por volta de um ano de idade. Usem essa habilidade.
Sinopse de Episódio
Continuação direta do episódio “USS `Callister`” da quarta temporada. A tripulação da nave tem que sobreviver em um MMO para 30 milhões de pessoas, e suas versões na realidade começam a suspeitar de algo.
“Black Mirror” é conhecido por inúmeros easter eggs e referências a si mesmo. Em “Brinquedo”, até personagens que já apareceram antes apareceram. Mas nunca houve uma sequência completa. Por que essa honra foi concedida именно “USS `Callister`”? Quem sabe. Talvez porque o episódio foi muito bom. Ou talvez porque foi quase o único que tinha potencial para uma continuação.
A equipe virtual escapou do capitão e se transformou em algo como NPCs com bugs no MMO “Infinito”. Para sobreviver, eles são forçados a roubar jogadores. Mas, ao contrário dos jogadores, para nossos heróis todos os perigos do mundo virtual são absolutamente reais. A analogia mais próxima, provavelmente, é “Free Guy” com Ryan Reynolds (o episódio até tem um fã do FC “Wrexham”, pertencente a Reynolds).
Enquanto isso, no mundo real, Nanette (a protagonista) por algum motivo se transformou em uma cópia de Robert Daly (o vilão principal da primeira parte). Ela chega à conclusão de que seu clone digital está preso no jogo e está tentando ajudá-la. Bem, e então a trama se desenvolve como deveria, agradando algumas vezes com “reviravoltas”.
Alguns não gostarão, mas me agradou que a sequência mudou ligeiramente de gênero. A primeira parte foi um thriller – os heróis estavam presos sozinhos com um sociopata rancoroso e todo-poderoso. A continuação é mais um filme de ação, um blockbuster espacial, se quiser. Mas o humor permaneceu o mesmo.
*O movimento LGBT foi reconhecido como extremista e suas atividades proibidas no território da Federação Russa