No dia 3 de abril, a Netflix lançou a série animada Devil May Cry, dirigida por Adi Shankar e roteirizada por Alex Larsen. A produção é inspirada na famosa franquia de jogos homônima da Capcom. A primeira temporada consiste em oito episódios no estilo já conhecido dos streamings, similar a séries como “Castlevania”, “DOTA: Dragon`s Blood” e “The Witcher: Sirens of the Deep”.
Devil May Cry é uma franquia amada por milhões de fãs, considerada por muitos como um ícone cultural. Com uma identidade visual e narrativa bem estabelecida, as expectativas para a adaptação animada eram altíssimas. Imagina-se a pressão sobre os criadores durante a produção. No entanto, o diretor Adi Shankar pareceu bastante otimista com o resultado, segundo suas próprias palavras.
“O roteiro da primeira temporada inteira está pronto. Tive a oportunidade de trabalhar com o talentosíssimo roteirista Alex Larsen na história. O roteiro ficou muito legal, e eu queria que os fãs da série se orgulhassem dele. A série é feita de fãs de DMC para fãs de DMC.”
A trama do anime é parcialmente baseada na mangá prelúdio (Devil May Cry 3, mangá), mas também funciona como um spin-off da série principal. Elementos da história e personagens foram retirados do material original.
Aqui, um jovem e inexperiente Dante ainda não sabe o que aconteceu com seu irmão Vergil, nem abriu sua agência de caça a demônios. Ele trabalha como mercenário para o esperto Enzo.
Um coelho misterioso de monóculo, reminiscente de “Alice no País das Maravilhas”, surge e rouba uma espada lendária do Museu do Vaticano. Segundo ele, a espada tem o poder de finalmente unir os mundos humano e demoníaco. A espada só precisa de um amuleto, cuja metade está com Dante e a outra com Vergil.
Criminosos se unem para capturar Dante e obter o valioso amuleto, buscando a recompensa. Entre eles está Lady, que aqui ainda é Mary, membro de um esquadrão de elite de caçadores de demônios. O coelho coloca em prática seu plano maligno e persegue o sangue do protagonista, enquanto Dante tenta resistir a tudo para evitar uma catástrofe mundial e restaurar a ordem, assim como seu pai, o demônio Sparda, fez no passado.
O resultado final é uma produção de ação razoável para passar o tempo. É provável que agrade especialmente aqueles que nunca jogaram os jogos da franquia e só ouviram falar da série superficialmente. Há uma trama aceitável com um antagonista relativamente interessante e justificado, um protagonista carismático, um pouco de lore e até um drama (forçado, é verdade).
A trilha sonora é empolgante, com Rage Against the Machine, Limp Bizkit nos créditos de abertura e, de modo geral, muito rock bom e inesperado. Até a famosa Bury the Light, com o verso “I am the storm that is approaching”, está presente como uma referência agradável. Sim, a seleção não é exatamente no estilo dos jogos originais, mas ainda assim é marcante.
Existem algumas referências aos jogos originais, uma abertura muito legal e chamativa e… só.
Infelizmente, os pontos positivos do anime terminam aqui, e os problemas começam. Os principais e mais gritantes podem ser descritos com uma citação do próprio desenho: “Sabe o que eu senti quando matei seu irmão? Nada”, diz Dante, e como ele está certo. O protagonista acerta exatamente no ponto fraco de toda a série, que não provoca absolutamente nenhuma emoção. Nem em relação aos personagens principais, nem em relação aos assassinatos em massa e sangrentos na tela, nem em relação à própria história. É difícil aceitar isso, considerando que tudo para atingir o nível máximo de empatia já havia sido preparado pela Capcom e seus jogos da série.
Há motivos para supor que o ponto forte dos jogos reside na combinação incrível de “coolness” beirando o ridículo, lutas estilosas, protagonistas supersexuais e um drama profundo, embora extremamente simples. Como foi possível perder praticamente tudo isso no anime, só Deus sabe. Ficou claro que a diversão acabou quando, por metro quadrado de tempo de tela, havia 90% de conversas chatíssimas e 10% – com sorte – de golpes de luta divertidos do protagonista de cabelos brancos.
O cenário dos jogos originais também se perdeu. Todos os elementos da era vitoriana e pequenas pinceladas de modernidade, a vestimenta dos protagonistas em sintonia com esse universo, o design dos monstros – tudo isso carregava uma grande parcela da narrativa. Os criadores do anime (que, na verdade, nem é anime, mas um produto terceirizado de animação coreana e direção americana) trocaram o original bem pensado por uma mistura estranha de figurinos futuristas, a América moderna e seus valores, além de temas da moda. Para entenderem, a bandeira americana propositalmente acentuada na última série da primeira temporada aparecia quase que a cada frame, frases como “God bless America” e piadas “irônicas” sobre “we live in the society” escapam da boca do antagonista de tempos em tempos, e há até mesmo uma tomada do inferno pelos americanos, que é uma tentativa de lidar com o PTSD cultural vietnamita (a julgar pelas “fotos” assustadoras de soldados americanos com crianças demônios sob os tanques ou com crânios de “criaturas” com chifres no capô do carro), ou um desejo de extrair drama do nada.
É óbvio que os fãs da velha guarda não vão aprovar essa substituição, e o sangue novo… Talvez alguém goste que Devil May Cry de repente tenha se tornado um centro de discussões políticas, mas é duvidoso.
Em vez de uma narrativa única, onde cada personagem tem características de luta que o definem como indivíduo, no produto da Netflix recebemos pancadaria pela pancadaria. Não há mais a luta caótica de Dante, nem os movimentos elegantes e confiantes de Lady. Todos rolam mais ou menos bem, mas fazem isso de forma meio parecida (e, aliás, nem sempre de forma legal). A direção das lutas não apresenta nada particularmente memorável, a pseudodinâmica (que, aliás, muitas vezes consiste em stills com flashes saindo de pistolas) causa um verdadeiro estupor, quando na tela parece estar acontecendo uma carnificina de verdade, e você não sente nada. Nem mesmo a alegria infantil de um conteúdo supostamente adulto na tela.
Quero que minha série animada seja tão visualmente inventiva quanto o material original. Busco um estilo que consiga retratar o `caos belo` e, ao mesmo tempo, ser uma ode à criação da Capcom. Na minha visão, esse estilo deve ser elegante e ao mesmo tempo pomposo, e um projeto assim só consegue atingir essa complexidade se seu criador colocar alma em cada etapa da criação. Foi exatamente isso que eu fiz e pretendo continuar fazendo enquanto trabalho no projeto.
Se o jogo propositalmente não entrava em detalhes, e dava informações de forma extremamente dosada, para não correr o risco de que reflexões chatas sobre o passado dos personagens quebrassem o ritmo, a série se jogou de cabeça nesse aspecto. Recortes de videoclipes incrivelmente longos de momentos dramáticos, recortes estranhos e em sépia do passado do pai de Dante e coisas do tipo. Até mesmo um enorme flashback mudo apareceu, onde o estilo de animação muda para contar a história do passado. O problema é que nenhum desses clipes prende, não conecta com os personagens, embora tente cumprir sua função principal: criar um drama irreal.
Os personagens não cumprem seu papel como personagens, e permanecem na memória apenas como funções. Coelho – supervilão com intenções originalmente boas, apenas destruído pela sociedade. Mary, obviamente, o interesse romântico do protagonista, uma máquina de produzir palavrões e assassinatos, cuja linha dramática não está ligada ao pai, mas aos membros de seu esquadrão. Enzo – um cara de quem você não espera heroísmo, mas ele acontece. Dante – um cara supostamente legal com um toque de desajeitado, mas que acaba sendo meio que um exibido incompetente. A sensação é que para uma compreensão mais profunda do personagem, basta assistir à cinemática de abertura de Devil May Cry 3, e não a todos os oito episódios do anime. Aquela mesmo, em que Dante come pizza de forma cool.
Há um chefe de corporação que parece agir para o bem do povo, mas que também é o verdadeiro vilão principal, e um cientista indiano genial está presente de forma não irônica. O clássico ouro de heróis de papelão, que por algum motivo querem enfiar em todas as séries medianas. A história da família de Mary parece ter sido copiada de Batman: exatamente como em “Batman Begins”, onde a família Wayne com o pequeno Bruce sai do teatro porque o menino se assustou com morcegos.
Em geral, os criadores claramente se esforçaram para fazer um produto mais ou menos clássico com personagens e estilo reconhecíveis da franquia, mas enquadrado no formato serializado habitual. E isso, infelizmente, não funcionou. O resultado foi algo mediano, chato e insensível, que perdeu completamente o encanto de seu ancestral. Devil May Cry da Netflix certamente não é aquela série sobre a qual você vai querer refletir por algumas horas ou rever algum dia. Se você realmente quer mergulhar na franquia sem ser pelos jogos e ter prazer, é melhor assistir Devil May Cry da Madhouse de 2007. Lá sim, há motivos para se alegrar.