O cenário da música pop, particularmente o K-Pop, é um terreno fértil para a inovação e a quebra de paradigmas. Mas, e se a vanguarda dessa evolução não fosse composta por artistas de carne e osso, mas por avatares digitais meticulosamente construídos? A chegada do filme animado da Netflix, “KPop Demon Hunters”, reacendeu essa discussão com suas bandas fictícias, Huntrix e Saja Boys, conquistando as paradas. Contudo, muito antes desses caçadores de demônios virtuais e de seus hits virais, um quarteto de campeãs de League of Legends já provava que a era dos ídolos virtuais havia chegado: o K/DA.
A comparação é inevitável e, francamente, um tanto óbvia. Dois grupos femininos animados, com canções K-Pop cativantes, que se dedicam a combater inimigos com armas e trajes marcantes. As semelhanças visuais e cromáticas são notáveis, e até mesmo colaborações com o grupo real Twice ecoam entre eles. Não é exagero afirmar que a equipe por trás de “KPop Demon Hunters” encontrou inspiração no trabalho pioneiro da Riot Games. Afinal, o supervisor musical Ian Eisendrath confirmou que K/DA foi “uma de nossas muitas influências” para a sonoridade de Huntrix, uma entre 8 a 12 referências que ajudaram a “imaginar como essas músicas poderiam soar”. Uma declaração elegante, quase um aceno à majestade virtual que os precedeu.
Onde Tudo Começou: O Gênio Inesperado de K/DA
Em 2018, a Riot Games, desenvolvedora de League of Legends, decidiu arriscar. Não com um novo campeão ou modo de jogo, mas com uma banda virtual. Assim nasceu K/DA, composta pelas icônicas campeãs Ahri, Akali, Evelynn e Kai`sa. O projeto foi concebido inicialmente como um ato de abertura para o Campeonato Mundial de League of Legends – e, sejamos sinceros, um veículo para vender algumas skins brilhantes e glamorosas para seus personagens. Ninguém, nem mesmo a Riot, parecia prever o tsunami cultural que estava prestes a desencadear.
O single de estreia, “Pop/Stars”, lançado junto com uma performance de realidade aumentada em Incheon, Coreia do Sul, transformou-se em um fenômeno. Alcançou o topo das paradas de K-Pop e o quinto lugar nas paradas pop gerais da Apple Music nos EUA, além de liderar a Billboard`s World Digital Song Sales. O videoclipe viralizou no YouTube, superando 100 milhões de visualizações em apenas um mês. Em um feito inédito para uma banda “falsa”, K/DA fez história ao se tornar o primeiro grupo feminino de K-Pop a ter um single certificado como platina com “Pop/Stars”. A ironia? Um grupo que não existe fisicamente superou muitos artistas reais no quesito impacto.
A Magia por Trás da Realidade Virtual
O sucesso de K/DA não foi apenas sorte, mas o resultado de um compromisso intransigente com a “fantasia de que os campeões estão no mundo real”, como explicou Viranda Tantula, líder criativa da performance de estreia. Para vender essa ilusão, era preciso criar uma música pop que pudesse competir com a música real e uma performance digna de um estádio lotado. E conseguiram. Com vocais fornecidos por artistas reais como Madison Beer, Jaira Burns, Miyeon e Soyeon ((G)I-DLE), K/DA não era apenas visualmente deslumbrante, mas sonoramente impecável.
Embora inicialmente planejada como um evento único, a explosão de “Pop/Stars” forçou a Riot a repensar. Dois anos depois, em 2020, K/DA retornou com o EP de cinco músicas “All Out”, novamente agraciando a cerimônia de abertura do Worlds com uma performance de realidade aumentada do single “More”. A Riot continuou explorando este universo, introduzindo a boy band Heartsteel e o projeto True Damage (liderado por Akali), todos coexistindo no mesmo universo alternativo de League of Legends. Claramente, a empresa descobriu uma fórmula de sucesso que vai muito além dos pixels.
O Fenômeno Huntrix e o Legado de K/DA
O recente sucesso de “KPop Demon Hunters” da Netflix não apenas trouxe um novo grupo de ídolos fictícios para o mainstream, mas também gerou um renascimento do interesse por K/DA. Os comentários nos vídeos de “Pop/Stars” no YouTube estão repletos de novos fãs que chegaram através do filme, e o subreddit de K/DA fervilha com mashups e fan arts que unem os dois universos. Essa conexão é fascinante, pois sugere que grupos virtuais podem servir como uma “porta de entrada” menos intimidadora para novos fãs de K-Pop, que talvez ainda não estejam prontos para a complexidade da cultura de fãs dos grupos reais.
A diferença crucial, por enquanto, é que K/DA é concebido como uma banda que realmente existe em nosso mundo virtual – com performances em estádios, videoclipes e interações nas redes sociais. Huntrix, por outro lado, reside apenas na narrativa de “KPop Demon Hunters”. No entanto, os resultados de Huntrix e Saja Boys nas paradas, superando até mesmo nomes como Blackpink e BTS em certas categorias, são um indicativo poderoso. A questão é: a Netflix seguirá o modelo da Riot? Ian Eisendrath, o supervisor musical do filme, já manifestou o desejo de que Huntrix e Saja Boys se tornem bandas virtuais “de verdade”. A venda de arenas com ingressos para hologramas pode não estar tão longe quanto pensamos.
O Futuro é Virtual?
A ascensão desses ídolos virtuais levanta questões intrigantes sobre o futuro da indústria do entretenimento. Com a tecnologia de realidade aumentada e a capacidade de criar personagens totalmente digitais que podem “se apresentar” e “interagir” sem os desafios logísticos ou as controvérsias inerentes a artistas humanos, estamos testemunhando o alvorecer de uma nova era. É um universo onde a criatividade encontra a tecnologia de ponta para forjar ídolos que são eternamente jovens, livres de escândalos e sempre à disposição para um novo single ou uma nova skin. Uma realidade onde a “autenticidade” é redefinida pela capacidade de gerar engajamento e paixão, independentemente da matéria-prima. Seja bem-vindo ao palco do futuro, onde os limites entre o real e o digital são cada vez mais tênues e deliciosamente lucrativos.