Nosso convidado de hoje dispensa apresentações. Onde quer que Nikita `Daxak` Kuzmin jogue (ou não), ele sempre atrai a atenção da comunidade. Kuzmin é um dos jogadores profissionais mais notáveis, polêmicos e, por vezes, contraditórios na cena profissional de Dota 2. Por isso, quisemos conversar aprofundadamente com Nikita, não apenas sobre Dota 2 e sua recente transição para a Virtus.pro, mas também sobre sua abordagem mais ampla à carreira e à vida. Desejamos uma leitura agradável.
— Em sua última entrevista, deu para entender que, embora você quisesse manter a escalação da Chimera, isso não aconteceu. No entanto, a equipe, com exceção de Panto, acabou ficando junta e se juntou à Virtus.pro. Como isso aconteceu?
— Tudo aconteceu espontaneamente. É como naquela grande citação do Iceberg… Ou de outra pessoa (risos).
— A grande citação do Iceberg já soa bem.
— Sim, foi simplesmente uma escolha entre um `stack` [equipe improvisada] e algo que já estava funcionando. Escolhi o que já funcionava.
— Vocês poderiam ter ficado sob a tag da Chimera?
— Não.
— E quanto à alternativa, o `stack` que você mencionou?
— Era um `stack` com o Mukha: ALWAYSWANNAFLY, Lelis, eu, Copy e Kiritych.
— O que foi decisivo na escolha entre as duas escalações?
— Bem, foram os pontos e potencialmente mais chances de mostrar resultados, especialmente porque não resta muito tempo até o fim da temporada. Não que as pessoas naquele `stack` [com AWF] fossem melhores em termos de qualidade de jogo ou algo assim.
— Novamente, em sua entrevista anterior, você disse que a facilidade em jogar bem na DreamLeague se deveu muito ao fato de vocês não terem mais nada a perder — isso trazia leveza. Agora as circunstâncias mudaram, há algo a perder novamente. Isso significa que ficou mais difícil jogar?
— Não, pessoalmente, para mim tanto faz. Estou bem de qualquer jeito. Agora tudo dependerá do trabalho que fizermos e de quão rápido conseguiremos entrar em forma, para que nas qualificatórias para Riyadh e TI não haja, digamos, nenhum imprevisto.
— A substituição de um jogador na escalação afeta muito a equipe? Tanto em geral quanto especificamente no caso de vocês?
— No geral, afeta bastante, porque pelo menos um dos dois suportes precisa saber falar. E se isso não acontece, consequentemente, surge um problema no início do jogo. No começo, os suportes são os mais importantes — só depois os carries entram. Consequentemente, se ambos os suportes ficam em silêncio, isso traz algumas desvantagens.
— Ou seja, Rein é mais calado?
— Bem, ele é novato nesse nível. Mesmo que ele não fique em silêncio, ainda não consegue se expressar completamente. No início, isso é normal.
— E tirando o fato de ele ser calado, qual sua primeira impressão sobre ele?
— Ele é trabalhador e um cara bastante inteligente. Ou seja, acho que no futuro ele poderá se desenvolver — ele precisa de tempo.
— Então, quais foram suas impressões dos primeiros jogos pela Virtus.pro?
— Bem, gostaríamos de ter mostrado um nível mais alto. Mesmo sem considerar o top 4, mas apenas olhando quantas qualificatórias jogamos antes… Gostaríamos de ter vencido o torneio que, sejamos honestos, está longe do nível tier 1 em termos de participantes, e pelo menos ter mostrado alguma disputa na qualificatória [para a DreamLeague]. E não apenas a Nigma vencer por 3:0 em todas as situações e com qualquer escolha.
— A que você atribui o fato de não terem conseguido mostrar o que queriam? À substituição ou a esse processo de transição para uma nova organização?
— Isso é sempre uma questão de forma individual pessoal. O que as pessoas sempre falam — sobre organização, bootcamp em outro país, comunicação, blá-blá-blá — tudo isso desaparece diante da forma pessoal de cada jogador.
— Então me diga mais sobre a forma individual. Eu entendo do que depende a forma no esporte tradicional — lesões, cargas de treinamento e tal. Do que dependem as flutuações da forma pessoal no Dota 2?
— No meu entendimento, tudo isso pode ser descrito em uma palavra — disciplina. Ou seja, disciplina, motivação, e assim por diante. Se uma pessoa não é disciplinada e não está motivada, terá problemas com a forma pessoal. Por que os jogadores antigos não são respeitados? Porque surgem outros momentos que os distraem: família, namorada, filhos, outros objetivos de vida e coisas do tipo.
— Há uma visão alternativa: que família, esposa, namorada, pelo contrário, podem ser um impulso, digamos, um apoio e um pilar que ajuda na carreira. Ou seja, pelo que entendo, você vê isso exclusivamente como fatores de distração?
— Não completamente. É claro, há casos em que para você esposa, namorada, filhos são mais como um hobby. Ou seja, você precisa definir prioridades. Se para você a prioridade principal é o trabalho, não importa o que aconteça, você sempre colocará o trabalho em primeiro lugar. Se for assim, então arrume duas namoradas, dez filhos, 15 negócios — tudo ficará bem.
— Se a forma se baseia na disciplina, quão fácil ou difícil é para você manter a forma de jogo constantemente?
— Para mim é fácil. Porque tenho experiência, incluindo de vida, e uma clara consciência de que, além do Dota, não sei fazer mais nada. Sim, no Dota conquistei certo sucesso e posso ir fazer stream e ganhar muito, posso, hipoteticamente, não fazer nada por dez anos e ter dinheiro tranquilamente, mas… quero mais. Quero ganhar dinheiro para o resto da vida ou para algum negócio.
— Ok, suponhamos que você tenha ganhado dinheiro para o resto da vida. O que você faria então?
— Sou um trabalhador incansável, mas acho que provavelmente nem me dedicaria a negócios, mas sim a algo relacionado à música. Poderia me dar ao luxo de contratar os melhores professores, dedicar todo meu tempo e atenção a isso e, cedo ou tarde, conseguiria cantar alguma coisa.
— Em que gênero você gostaria?
— Bem, certamente começaria com algo simples — tipo rap, e terminaria… Nem sei.
— Ou talvez, gostaria de algo relacionado à arte dramática. No meu entendimento, se você é streamer, tem uma certa dose de carisma, algo você já consegue. E se cantar exige muito trabalho, com bons resultados e uma mídia desenvolvida, entrar em alguma série e simplesmente tentar, fazendo um teste de realidade, é perfeitamente possível. Seria interessante entrar em alguma série de nível tier 2 ou tier 3 e entender o quão adequadamente eu me sentiria lá, como atuaria, quais seriam as críticas.
— E esses impulsos relacionados à arte surgiram recentemente, ou é algo em que você pensava antes do Dota?
— Provavelmente não antes do Dota, isso surgiu durante. Temos filmagens constantes, e os streams… No final das contas, em cada equipe havia uma certa presença de mídia. Em alguns lugares era melhor, em outros pior, mas mesmo assim havia muita mídia diversificada. Incluindo algo como mini-filmes. E essa é uma experiência muito legal que influenciou.
— Lembro que você teve um vídeo divertido da BB Team sobre sua infância.
— Algo assim. Verdade absoluta (risos).
— Você mencionou uma ideia que também às vezes surge de outros jogadores de Dota: “Eu, além do Dota, não sei fazer mais nada”. Isso não te preocupa? Não há, talvez, algum arrependimento sobre isso: “Poxa, gostaria de ter me dedicado a isso ou aquilo em vez disso”?
— Poxa, sempre dá vontade de dizer que gostaria de saber fazer tudo no mundo, mas a realidade é que, mesmo deixando o Dota de lado e pegando qualquer área, se a pessoa quer alcançar algo lá, ela precisa viver para isso, só para isso. Se ela não vive para sua área, provavelmente não alcançará nada.
— Sim, isso é verdade absoluta, mas há uma nuance. A maioria das áreas da vida, digamos, pode acompanhar uma pessoa por toda a vida. Hipoteticamente, um economista pode estar em sua área aos 70 anos e se realizar plenamente. Com atletas e ciberatletas a história é diferente: após o fim da carreira aos 30-35 anos, pode surgir uma crise existencial, quando aquilo a que você se dedicou a vida inteira não está mais disponível…
— Bem, em primeiro lugar, há os resquícios do passado na forma de dinheiro. E quaisquer que sejam seus resultados — bem, pelo menos minimamente adequados —, se você não for completamente idiota, o componente de mídia pode ser desenvolvido e levado adiante, não apenas em streams, mas, como no esporte tradicional, em acordos de marca.
— Por que, você acha, essa conclusão perfeitamente compreensível e lógica sobre o valor da mídia é tão pouco compartilhada pelos jogadores profissionais de Dota?
— Porque todos que jogam computador tanto assim são antissociais. Sabe, isso não acontece automaticamente, também é preciso trabalhar nisso. E todos sempre têm o sonho de que agora vão obter resultados, e depois começarão. Mas aí já surgem outros problemas, ou simplesmente param de se importar com tudo. E quando realmente começam a pensar nisso, já é tarde demais.
— A propósito, você conversou com algum de seus companheiros de equipe sobre esse assunto?
— Aconteceu, mas depois percebi que o futuro deles é problema deles. Minha tarefa é que eles aprendam a jogar. E eu entendo que se você tentar fazer dez coisas, é improvável que tenha sucesso em todas as dez.
— Você disse que as pessoas que jogam muito são, em grande parte, antissociais. Você se incluía ou se inclui nisso?
— Incluía — sim. Me incluo agora… Comparado a uma pessoa comum — sim, comparado a um jogador de Dota — provavelmente não.
— E quando você começou a mudar nesse aspecto?
— Isso acontece gradualmente ao longo de todo o processo de vida. Sabe, um pequeno detalhe aqui, um pequeno detalhe ali. Toda a nossa vida é feita de pequenas coisas.
— Sua própria imagem na mídia é bastante marcante. Talvez uma das mais marcantes e visíveis. Mas, ao mesmo tempo, há muitos aspectos negativos em sua imagem. Você é considerado bastante duro, às vezes inflexível, conflituoso. Você concorda com a imagem que tem na comunidade, ela está próxima do real Nikita?
— Mais sim do que não. Se você quer ser o melhor, precisa ver a realidade — isso é um. E saber corrigir seus erros. É ótimo sempre dizer a todos que todos são sempre bons e tal. Mas a realidade é que se todos são sempre bons e todos jogam bem, de onde vêm os vencedores?
— Então quero esclarecer: suponhamos que você diga a verdade a alguém, e isso leve a um resultado negativo, mesmo que a verdade esteja do seu lado. Você deve continuar falando a verdade, não seria melhor dizer: “Você foi bem, na próxima conseguirá”?
— Muitas vezes na minha carreira eu deveria ter ficado em silêncio e não tentar corrigir pessoas que não podiam ser corrigidas. Se a pessoa é fraca e não está pronta para aceitar críticas, então… deveria simplesmente ter dito: “É seu direito, não posso te ajudar nessa situação”, — e não se expor. E se você tenta corrigir tudo e todos, infelizmente, pode se expor.
— Você está dizendo agora que entende que poderia ter agido diferente, então por que agiu assim?
— Sempre há a esperança de que se possa corrigir qualquer um, mas, provavelmente, isso não é verdade — nunca foi e nunca será.
— Voltando à imagem na mídia. Você gostaria que ela fosse um pouco diferente, para que associassem menos negatividade a você?
— Eu não construo minha imagem manipulando e prejudicando as pessoas. Na verdade, é muito simples fazer isso. Você diz: “Op, mudei drasticamente”, — explica como mudou e tal. Mas eu mesmo não curto isso. É, sabe, como quando eu era streamer, tive a oportunidade de fazer dezenas de milhares de colaborações diferentes com diferentes `freaks`. E de fato isso traria um sucesso irreal, mas eu simplesmente não gosto disso.
— É a mesma coisa que você jogar em MMR baixo, como fazem Stray e outros parecidos, isso exigiria dez vezes menos carisma e esforço. Você nem precisa ganhar. Você não precisa fazer nada, apenas ouve as pessoas te entregando conteúdo. Não gosto de fazer isso — não é a isso que aspiro, nem o que quero. Me diga um streamer que, ao entrar em MMR baixo, não recebeu um aumento de espectadores? Todos receberam. Isso exige menos investimento, e o resultado é mais fácil. Mas não é isso que toda pessoa quer.
— Sim, isso é fato. Mas eu falava um pouco sobre outra coisa. Pergunto se não havia receio de que, por causa do rastro de conflitos aos olhos da audiência, você pudesse, hipoteticamente, se transformar em Lil, para quem parte das portas na cena profissional foram fechadas por causa disso?
— Por um lado, sim. E por outro lado, digo o seguinte… Poxa, essa é uma pergunta um pouco difícil, porque, no fundo, tanto o Dota 2 quanto outras modalidades não são apenas sobre sua habilidade, o fator humano e coisas do tipo influenciam. Mas, mesmo assim, se você tem super alta habilidade, toda essa reputação — cedo ou tarde… Em primeiro lugar, pelo menos um pouco você pode mudar, e em segundo lugar, se você tem alta habilidade, pode-se fechar os olhos para algumas coisas. O próprio Lil, se ele fosse incrivelmente habilidoso agora, como nos tempos da escalação dourada da VP, seria muito improvável que não houvesse uma equipe que quisesse contratá-lo. Isso é um fato.
— Ou seja, qualquer imagem, por pior que seja, não conseguirá fechar todas as portas para você?
— Sim, sim. Algumas portas, claro, estarão fechadas, mas longe de todas.
— Queria perguntar sobre suas “cartas abertas”, que surgiram após saídas de equipes e que depois se tornaram o início de conflitos públicos, digamos. E eu entendi sua lógica, que você dizia a verdade às pessoas na cara para corrigi-las e obter resultados. Mas quando você já saiu da equipe, não pode mais influenciar o resultado. Por isso, quero perguntar: para que isso servia e como você vê essas cartas abertas agora?
— Veja, em primeiro lugar, voltando ao fato inicial: simplesmente não vale a pena tentar mudar o que não pode ser mudado. Era preciso simplesmente se resignar e aceitar que, por mais habilidoso que você seja e por mais que queira mostrar a outras pessoas, cada um tem seu limite. E não se deve tentar transformar algo непонятно чего [qualquer coisa] em um bom jogador. Basta extrair o máximo dele, e quando o máximo dele for atingido, dizer “É isso, tchau”.
— Em segundo lugar, sobre essas cartas abertas… Por que eu inicialmente fui para o streaming? Porque naquela época houve um momento muito difícil e doloroso com o Boolk, que me afetou muito. E então decidi ficar em silêncio. Naquela época eu era jovem, decidi ficar completamente em silêncio — e isso me consumiu completamente por dentro, assim como minha reputação. E, consequentemente, nas vezes seguintes, tentei me calar menos sobre o que era realmente importante para mim dizer.
— Por que a história com Boolk foi tão decisiva e difícil para você?
— Bem, sabe, nossas primeiras experiências nos afetam mais. Aquela foi minha primeira equipe, meus primeiros conhecimentos. Mesmo considerando as coisas que ele me dizia, sou grato a ele por ter aprendido muito sobre Dota com ele. Essencialmente, eu não sabia nada sobre Dota antes daquela equipe [Gambit].
— Qual é então sua abordagem atual, digamos, ao sair de uma equipe? Hipoteticamente, qual a probabilidade de você publicar mais uma carta aberta no futuro?
— Sim, provavelmente a probabilidade diminuiu. Porque agora, quando vejo que uma pessoa atingiu o máximo, minha tarefa é fazer com que os outros vejam isso, e não tentar resolver o problema que não pode ser resolvido. Minha tarefa é jogar no meu máximo, mesmo que cada um dos meus companheiros de equipe não o faça, porque tenho responsabilidade perante mim mesmo.
— Além de ter mudado sua visão de que não faz sentido mudar as pessoas, o que mais mudou em você, se comparado ao Daxak da época da BB ou ao Daxak da época da Gambit?
— Bem, certamente comecei a jogar melhor. Isso sempre se pode dizer. E do ponto de vista humano, agora tento expressar meus pensamentos de forma mais delicada em alguns lugares, tento fazer isso através do treinador em outros, em alguns nem tento. E antes eu simplesmente diria: “Bem, é óbvio: 2+2=4! Por que ele não consegue entender isso?”. E antes eu insistiria até o fim. Embora 2+2 realmente seja 4, mas se a pessoa não conhece as leis da matemática, e eu não sou um matemático que pode explicar isso de forma clara, bem, tudo bem.
— É claro que na mídia muitas vezes aparecem histórias ruins sobre como você tentou ensinar alguém ou provar seu ponto. E você pode contar histórias de sucesso, quando alguém, graças aos seus conselhos, hipoteticamente, entendeu que 2+2=4?
— Vamos lá, olhe a quantidade dos meus companheiros de equipe e os resultados desses companheiros de equipe. E essa pergunta seria melhor feita a eles. Faça essa pergunta ao MieRo, Larl e assim por diante. Há muitos companheiros de equipe assim. E pergunte a eles: “Daxak influenciou vocês?”. Essa será uma avaliação mais objetiva.
— É importante para você ser a voz principal e, em certa medida, o chefe na equipe?
— O resultado é importante para mim. Se para isso eu preciso falar — falarei. Se para isso eu preciso ficar em silêncio — ficarei em silêncio.
— Com que frequência você esteve em equipes onde havia um líder que liderava e em quem você confiava silenciosamente?
— Isso nunca aconteceu em lugar nenhum, 100%. Embora… Parcialmente aconteceu com o SoNNeikO, até na atual escalação da Chimera alguns momentos funcionaram um pouco. Na DreamLeague, por exemplo, eu ficava calmamente em silêncio e estava totalmente focado em mim. Para mim, isso é ótimo.
— Discutimos que ao longo da carreira você muitas vezes disse às pessoas verdades às vezes não muito agradáveis, e com que frequência você elogia seus companheiros de equipe?
— Esse é meu problema, que não consigo resolver até agora. Tenho problemas com elogios — estou tentando resolver isso e pelo menos fazer alguns elogios. Essa é minha parte fraca.
— E por quê, a que isso se deve?
— Simplesmente sou uma pessoa que acredita que, ao elogiar alguém, você não lhe dará nada, não mostrará, não ensinará. Mas não é assim que a psicologia funciona para 90% das pessoas. Provavelmente, sem elogios, elas nem sequer falarão com você, grosso modo.
— Ou seja, isso funciona da mesma forma fora do Dota e da cena profissional?
— Acho que sim.
— Queria me afastar um pouco do tema e falar sobre clubes. No Dota, ao contrário da maioria dos esportes coletivos tradicionais, os jogadores não têm ligação e lealdade aos clubes. Você não verá um jogador de Dota beijando o escudo do clube ou recusando uma transferência para outra equipe por apego aos fãs. No Dota, o clube é apenas um empregador e nada mais. Por que isso?
— Porque os esports existem muito menos tempo do que o esporte tradicional. Quanto tempo existem os esports? Bem, pouco mais de 20 anos. E o futebol? Mil anos?
— Bem, pouco mais de cem.
— Bem, cento e pouco — nesse nível profissional. Mas ainda assim, muito mais. E, digamos, quantas pessoas no planeta podem jogar Dota e quantas pessoas no planeta podem usar uma abóbora ou qualquer outra coisa em vez de uma bola. Entende o que quero dizer? A amostra de pessoas é muito maior. E é preciso entender que o número de pessoas antissociais no futebol é muito menor do que nos esports. E a pessoa sempre sabe que, por mais trabalhadora que seja, na realidade, um — ela sempre pode ser substituída, e dois — é uma grande sorte ter chegado aqui, ser notada, ser cuidada como uma criança. Nos esports, muitas pessoas não entendem essa disciplina básica que não lhes permite se desenvolver até que aconteça um `kick`. A melhor motivação no Dota é o `kick`. Enquanto a pessoa não é `kickada`, ela não se importa. Mas quando é `kickada`… Puta merda, que motivação surge.
— Já tocamos várias vezes no tema da disciplina ao longo da entrevista. Por isso, quero perguntar: o que é disciplina para você, como ela se manifesta em uma equipe profissional de Dota 2?
— No ideal, é pelo menos a disciplina no próprio Dota. E depois, para os melhores e de nível super-super-super tier 1 — comunicação, alimentação, rotina diária. Para começar, gostaríamos simplesmente que todos viessem para os treinos, estivessem completamente focados, e se combinamos quatro jogos, então todos os jogos fossem jogados de forma inteligente. Ou seja, mesmo que você jogue contra adversários fracos, seja em partidas públicas, treinos ou onde quer que seja, que tudo seja o mais disciplinado possível.
— Isso é interessante. Você começou dizendo que pelo menos no próprio Dota as pessoas deveriam estar focadas. Parecia que isso era o básico, algo que nem precisava ser mencionado. Pelo visto, há problemas com isso?
— Sim, até com jogadores de nível tier 1. Há momentos em que até jogadores top cometem os mesmos erros. Você pergunta a alguém: “Por que você errou?”, — e ele responde: “Ah, me distraí, relaxei, pensei que já tínhamos acabado” ou “Ah, estamos jogando contra lixos”, entende?
— E isso é uma questão de disciplina, ou é um certo limite na multitarefa, hipoteticamente, o jogador não consegue ter todas essas variáveis na cabeça ao mesmo tempo, então esquece?
— No nível tier 3 — sim, [pode-se explicar assim]. Talvez até em algum lugar no nível tier 2. Mas isso acontece até no nível tier 1! Até nas melhores equipes! E como isso acontece até nas melhores equipes, depois é impossível provar algo à pessoa, porque ela responderá: “A melhor equipe do mundo faz essa besteira, mas mesmo assim vence, então o problema não é esse”. É, sabe, tive uma conversa com um fumante, ele disse: “Algo ficou ruim quando fumo e ando, acho que o problema é na caminhada”. Espero que ele estivesse brincando.
— E então quão importante é a disciplina fora do Dota e todas essas histórias sobre academia, alimentação correta, sono?
— Uns 10-15 por cento. Mas não adianta nada se a disciplina no Dota não for observada. Se pegarmos duas pessoas iguais, que jogam da mesma forma na mesma posição e têm o mesmo conhecimento, aquela que for mais disciplinada na vida real dará 10-15% mais impacto, grosso modo.
— Então quero perguntar também sobre o fator confiança no Dota. Como funciona para você: você sempre aborda novos companheiros de equipe com uma certa reserva de confiança, ou sua confiança precisa ser conquistada?
— O nível básico de confiança em cada pessoa é diferente — depende dos resultados, da forma atual e assim por diante. E depois ele vai para o positivo ou para o negativo. Quanto melhor você joga, mais positivo ele fica — quanto mais ações rápidas, boas e inteligentes. Quanto menos disso, menos confiança em você. Se você como jogador é ruim, mesmo que diga coisas absolutamente corretas, nunca haverá confiança em você, se estiver na posição de jogador. Então é melhor se tornar treinador, já que fala tudo de forma ótima, mas não consegue fazer. Na posição de jogador, você precisa mostrar pelo exemplo.
— Sabe, antes havia duas categorias de treinadores: o hipotético `drafter` e, digamos, o treinador tipo Artstyle, que unia a equipe…
— Bem, beber com todos… Mas na verdade, em algumas equipes faltam pessoas assim que unem de uma forma ou de outra.
— O treinador moderno para você — quais funções ele deve desempenhar?
— Em cada equipe individualmente, dependendo do que falta ao coletivo. Em alguns lugares é mais necessário um `drafter`, em outros alguém que reúna os jogadores.
— E para você?
— Especificamente para mim, a pessoa que sabe falar bem e cuida dos `drafts`. Ou seja, no ideal, que ele possa refrasear minhas informações de forma грамотно e entregá-las nos endereços certos e na quantidade necessária. Porque, quando há uma grande quantidade de informação, o “grande” vem em primeiro lugar, e só depois a “informação”, e não importa o quão correta ela seja.
— E todas essas conversas sobre amigos na equipe e interesses em comum, quando depois das partidas oficiais assistimos anime juntos, quão útil isso é na realidade?
— Acho que isso afeta a atmosfera e dá um impulso, assim como a disciplina fora do jogo, ou seja, também adiciona seus 10-15%. Mas, novamente, não adianta nada se vocês não entendem de Dota.
— Lembro também do vídeo da BB Team depois do The International 2022, onde você falava sobre o psicólogo, que ele “não fazia absolutamente nada”. Isso foi um caso isolado ruim, ou a utilidade potencial dos psicólogos para uma equipe de Dota é superestimada em geral?
— Acho que foi uma experiência desagradável. E o mais importante, você precisa entender que não adianta ter psicólogo se 90% dos jogadores, se não mais, disserem a ele: “Vá se ferrar, psicólogo”. Se a pessoa não está pronta para o psicólogo, ele não poderá ajudar de forma alguma.
— E por quê? Parece que nos últimos anos os psicólogos entraram fortemente no mainstream, e quase um terço das pessoas interagiu com eles de uma forma ou de outra… E aqui o psicólogo não é apenas para si mesmo, mas aparentemente para o resultado da equipe.
— Vamos colocar de outra forma, os jogadores dirão: “Sim, sim, vamos trabalhar com o psicólogo, blá-blá-blá”. Mas entre parênteses está: “Vá se ferrar”.
— Isso tudo por causa da introspecção?
— Sim, tudo por causa da introspecção e da forte antissocialidade.
— Então quero mudar um pouco de assunto neste momento e falar não sobre antissocialidade, mas sobre socialidade. Como é o Daxak fora do Dota 2? Quão diferente ele é do Daxak no Dota 2? Você tem um interruptor para mudar?
— Sou igualmente incrivelmente exigente na vida. Ou seja, no meu entendimento, é difícil para mim não apenas ter relacionamentos, mas até amizade com alguém, quando vejo que ele é um péssimo trabalhador, que não se importa. Para mim, isso já é um sinal de alerta tão grande que meu olho vai tremer quando eu vir alguém que não se importa. E aí ele, sei lá, tomando uma cerveja — não bebo, só como exemplo —, vai me contar como ele é ótimo, como ele é bom, e como ele tem azar.
— Ou seja, mesmo que o trabalho dele não esteja relacionado a você de forma alguma, mas se ele o despreza de forma flagrante…
— Sim, já me sinto simplesmente desconfortável, porque sei que se continuar me relacionando com ele e estiver em tal sociedade, cedo ou tarde posso me tornar como ele.
— Quais outros sinais de alerta existem para você nas pessoas?
— Qualidades desprezíveis como ser uma coisa na frente e outra pelas costas. Qualquer tipo de podridão. Uma pessoa que passa por cima dos outros, de forma dura e tal.