A cultura pop, como um espelho de uma casa de diversões, tem o hábito peculiar de nos fazer revisitar as obras de nossa juventude sob novas óticas. O que antes era nicho, torna-se referência. O que era fracasso, vira culto. E, de repente, uma piada dos anos 50 se perpetua em memes. Poucas sagas exemplificam essa trajetória tão vividamente quanto Scott Pilgrim.
Celebrando 15 anos desde a estreia de seu filme e jogo, a franquia de Bryan Lee O`Malley prova que seu impacto não foi medido em “dias, mas em anos”, transformando um conto de “nerd encontra garota legal” em um fenômeno cultural que continua a evoluir, adaptando-se e, de forma surpreendente, até mesmo subvertendo suas próprias raízes.
As Raízes: Quando a Cultura Pop Falava uma Língua Secreta
Na metade dos anos 2000, as graphic novels de Scott Pilgrim eram uma carta de amor a videogames antigos, animes e bandas indie canadenses. A história de Scott, um “slacker” meio nerd, que precisa derrotar os sete ex-namorados malignos de sua nova paixão, Ramona Flowers, ressoava profundamente com um público que entendia as metáforas do universo dos games inseridas no cotidiano. O`Malley, com sua honestidade emocional, conseguiu que a história atraísse tanto jogadores assíduos quanto aqueles que nunca tocaram em um controle, mostrando que as lutas de Scott para pagar o aluguel e amadurecer eram universais, mesmo que temperadas com socos e barras de vida.
Naturalmente, a adaptação cinematográfica de 2010 pelas mãos de Edgar Wright foi um casamento perfeito. Wright, um mestre em usar a cultura pop como atalho emocional – vide Spaced, Shaun of the Dead e Hot Fuzz – compreendia a linguagem de Scott Pilgrim. Seu filme, visualmente deslumbrante e narrativamente inovador, foi um feito audiovisual impressionante. Infelizmente, apesar da aclamação da crítica e de um elenco que se tornaria constelação, o filme foi um fracasso comercial retumbante na época, mal recuperando metade de seu orçamento. Parece que a audiência casual ainda não estava pronta para o maximalismo hipercinético.
O Jogo Esquecido: Uma Pérola de Pixel Art Contra a Corrente
Enquanto o filme lutava nas bilheterias, outra batalha de Scott Pilgrim acontecia em um meio diferente. Na Ubisoft, uma equipe liderada por Jean-Francois Major (futuro co-fundador da Tribute Games) decidiu apostar em algo inusitado para a gigante dos AAA: um beat-`em-up 2D de pixel art, estilo River City Ransom ou Turtles In Time.
A aposta era um tanto “compreendida, mas não totalmente” pela Ubisoft, que à época focava em grandes títulos como Assassin`s Creed Brotherhood. Major, com um riso, relembra que eles tiveram liberdade para criar. O resultado foi Scott Pilgrim vs. the World: The Game, uma obra de arte em pixel, com contribuições de O`Malley e do famoso pixel artista Paul Robertson, e uma trilha sonora eletrizante da banda chiptune Anamanaguchi. O jogo foi, ironicamente, um sucesso modesto em vendas iniciais, superando o filme em sua própria esfera.
No entanto, a alegria durou pouco. Em 2014, o jogo foi delistado das plataformas digitais devido a uma bagunça de problemas de licenciamento entre Ubisoft, Universal Pictures e ABKCO Music. Era o fim de uma era para muitos fãs, que viram sua pérola digital desaparecer no éter do esquecimento.
O Renascimento: “Anos, Não Dias”
A frase enviada a Edgar Wright após o fracasso do filme –
Anos, não dias.
– tornou-se um mantra profético. O filme, lentamente, encontrou seu público, transformando-se em um cult classic. Sua linguagem visual influenciou produções futuras, abrindo portas para a estética dos quadrinhos no cinema, como a que a Marvel viria a explorar. Da mesma forma, o jogo, apesar de seu sumiço, pavimentou o caminho para um renascimento dos beat-`em-ups 2D, inspirando títulos como River City Girls e Streets of Rage 4.
Em 2020, uma série de eventos celebrou seu status moderno: uma leitura do roteiro com o elenco original (agora repleto de estrelas consagradas), um relançamento teatral em 2021 e, milagrosamente, a resolução dos problemas de licenciamento do jogo. Scott Pilgrim vs. the World: The Game retornou triunfalmente às lojas digitais e ganhou até um lançamento físico pela Limited Run, provando que o carinho dos fãs era, de fato, mais duradouro que as cláusulas contratuais.
A Evolução Continua: Além da Nostalgia
O que poderia ser apenas uma onda de nostalgia se transformou em algo muito mais profundo. Bryan Lee O`Malley notou que a base de fãs de Scott Pilgrim não apenas crescia, mas também se rejuvenescia. Adolescentes que hoje descobrem a saga não estão apenas atrás das referências de outrora, mas se conectam com os personagens em um nível mais intrínseco. Essa observação foi o catalisador para Scott Pilgrim Takes Off, a série de anime da Netflix de 2023.
O anime, diferente de uma mera recontagem animada da graphic novel, subverte as expectativas logo no primeiro episódio: Scott perde a luta contra o primeiro ex de Ramona. A partir daí, a história se torna a de Ramona Flowers, explorando sua culpa e seu passado. É uma reinterpretação que só poderia surgir com 15 anos de retrospectiva e maturidade, mostrando que Scott Pilgrim não apenas cresceu com seu público, mas também se adaptou a um mundo em mudança, oferecendo um ponto de entrada para uma nova geração que busca mais do que apenas acenos nostálgicos. A série prova que, enquanto a nostalgia tem seu valor, a verdadeira vitalidade reside na capacidade de mudar e crescer.
A saga de Scott Pilgrim, da graphic novel ao cinema, dos pixels à animação da Netflix, é um testamento à resiliência de uma boa história. O que começou como um nicho de referências para “nerds”, floresceu em um fenômeno global que, ao invés de se prender ao passado, abraça a evolução contínua. Scott Pilgrim não é apenas uma recordação, mas uma exploração viva do que significa amadurecer e mudar, provando que, às vezes, a melhor continuação não é apenas uma repetição, mas uma nova aventura.