A franquia Silent Hill sempre foi sinônimo de terror psicológico, neblina opressiva e criaturas que são mais do que meros monstros – são espelhos distorcidos das psiques perturbadas de seus protagonistas. Após o aclamado remake de Silent Hill 2, que reacendeu a chama da série com maestria, a Konami e o estúdio NeoBards decidiram que era hora de um salto ousado, transportando a névoa para o Japão em Silent Hill f. E que salto foi!
Pela primeira vez, nos despedimos das paisagens americanas para imergir em um vilarejo japonês assombrado, Ebisuoka, com seus campos de arroz e santuários xintoístas. A protagonista? Shimizu Hinako, uma colegial que, ao que parece, passou tempo demais jogando Soulslikes. Este é um Silent Hill que você nunca viu antes, e a pergunta que ecoa é: ainda é um Silent Hill?
Do Horror à Adrenalina: O Combate no Epicentro
Motoi Okamoto, produtor da série, insistiu que Silent Hill f permanece um jogo de horror. Contudo, essa afirmação começa a balançar com as primeiras escaramuças. Hinako, aparentemente frágil, transforma-se em uma exímia lutadora, realizando esquivas perfeitas, parries de golpes monstruosos e contra-ataques que deixam os inimigos atordoados. O combate é, sem sombra de dúvidas, o pilar central desta nova iteração. E aqui reside um dos pontos mais polarizadores do jogo.
A mecânica de luta, embora detalhada com recursos como desvios ideais que restauram a resistência e contra-ataques que paralisam os inimigos, rapidamente se torna uma faca de dois gumes. Você se encontra alternando entre humilhar criaturas lentas e manter uma distância estratégica de inimigos com movimentos imprevisíveis. A barra de saúde de Hinako é frágil, transformando qualquer confronto com múltiplos adversários em um convite ao checkpoint. Adicione a isso uma câmera que, em momentos críticos, parece determinada a sabotar sua visão, e a receita para a frustração está completa.
A presença de consumíveis – chocolates para vida, refrigerantes para resistência, e até “itens mais ambíguos” (mas não proibidos, claro!) para a “fé” ou saúde mental – oferece alguma vantagem. Santuários servem como pontos de salvamento e de sacrifício, onde itens valiosos podem ser trocados por melhorias de atributos ou talismãs com bônus passivos. No entanto, tudo isso não consegue disfarçar uma verdade inconveniente: o combate é, em essência, enfadonho.
“É difícil fazer o jogador sentir medo de monstros quando ele tem a capacidade de espancá-los em combate corpo a corpo. Ainda mais difícil quando você introduz um arsenal completo de esquivas, parries e consumíveis. E com um modo FÚRIA?! De que horror estamos falando?”
A série sempre ofereceu a opção de fugir, mas Silent Hill f introduce “arenas forçadas”. É nesse momento que você encontra o que o artigo original carinhosamente chamou de “monstro de muitas tetas e bunda gorda” (жирнозадым многосисем), uma criatura imóvel que cospe massas de carne explosivas ou que se transformam em outros monstros. Você é obrigado a aniquilá-la para prosseguir, transformando o “horror” em um exercício tedioso de esfaquear a mesma criatura por minutos a fio. O desafio é zero, o interesse é nulo, e a quebra de armas (felizmente infinitas) é garantida. Esta criatura, para o deleite de todos, aparece regularmente, inclusive em triplicado no final.
Beleza Medonha: O Novo Rosto do Outro Mundo
O argumento de que Silent Hill f falha como horror não se baseia apenas no combate. Para evocar o medo subconsciente, um jogo deve distorcer o familiar. Em Silent Hill 2 Remake, hospitais, escolas e ruas familiares se transformavam em pesadelos de sangue, ferrugem e escuridão, com a trilha sonora infernal de Akira Yamaoka. A realidade se desmoronava.
Em Silent Hill f, essa desintegração assume outra forma. O “Outro Mundo” não é uma versão grotesca do nosso, mas um complexo de templos imerso na escuridão. Ferrugem e imundície são substituídas por flores vermelhas vibrantes e protuberâncias rosadas. Para um ocidental, isso não evoca terror, mas sim fascínio. É colorido, pitoresco, quase um convite a uma excursão por um Japão místico. As paisagens são deslumbrantes, com detalhes que pedem para serem explorados, e a maestria de Akira Yamaoka na composição da trilha sonora, embora atmosférica, atinge no máximo um arrepio na espinha, não o pavor visceral.
O jogo busca a beleza no horrível, e consegue isso com louvor. Em um PlayStation 5, Silent Hill f é visualmente superior, e a falta de um modo fotografia é um pecado capital, dada a quantidade de momentos que te fazem pausar para admirar a composição visual.
Psicologia Profunda e o Toque de Ryukishi07
A série Silent Hill sempre mergulhou nas profundezas da psique humana, revelando que os monstros são, muitas vezes, manifestações do inconsciente dos protagonistas. Abuso sexual, parentes mortos, uso de substâncias, violência – tudo isso é cozinhado em um caldeirão narrativo. Silent Hill f mantém essa tradição, adicionando seu próprio matiz cultural.
A história investiga a vida complexa das mulheres japonesas nos anos 60, com suas restrições sociais e conflitos internos. A protagonista, Hinako, parece lutar contra a depressão (uma das conclusões do jogo só é acessível se você evitar certos medicamentos, que servem como kit de primeiros socorros). Ciúmes, mágoa e morte se entrelaçam em uma narrativa que reflete problemas sociais reais. E, como de costume, múltiplas jogatinas com um “tamborim” serão necessárias para desvendar a história completa, já que a primeira passagem revela apenas fragmentos.
Dica de Sobrevivência (e Narrativa): O New Game+ em Silent Hill f não é apenas um repeteco. Ele desbloqueia novas cutscenes, armamentos poderosos e até chefes adicionais, elevando a dificuldade e exigindo que você colete notas e complete missões secundárias para desvendar toda a trama. Uma abordagem excelente que, ironicamente, pode ser prejudicada pela repetição do combate.
O roteirista, Ryukishi07, conhecido por Higurashi When They Cry, é um mestre em explorar psicose coletiva, lados sombrios da personalidade, paranoia e manipulação de perspectivas. Sua assinatura é visível desde as primeiras horas, com elementos narrativos que prometem uma experiência psicológica densa para os fãs de seu trabalho. A habilidade do autor em aprofundar-se na mente humana é inegável, e seu envolvimento é um ponto alto para a profundidade temática do jogo.
Um Fenômeno Chamado Silent Hill
Para apreciar verdadeiramente Silent Hill f, é preciso despir-se das expectativas dos jogos anteriores da série. Compará-lo com o remake de Silent Hill 2 é uma armadilha, pois o último é mais assustador, mais sombrio e mais imersivo em seu horror tradicional. Silent Hill f, por sua vez, tem um ritmo e focos distintos. Ele é, antes de tudo, um fighting game psicológico com elementos de exploração e quebra-cabeças (que, mesmo no difícil, são surpreendentemente simples).
A designação “Silent Hill” torna-se quase secundária. As semelhanças são formais: neblina, personagens perturbados, psicologia complexa e a música de Akira Yamaoka. Mas no restante, a essência difere. Silent Hill aqui não é mais um local, mas um fenômeno, uma manifestação do estado interno da protagonista, um conceito já explorado em Silent Hill: The Short Message, que se passava na cidade alemã de Kettenstadt.
Nessa perspectiva, Silent Hill f é um experimento interessante, arriscado e, em muitos aspectos, bem-sucedido para a série. Não há nada de criminoso em contar histórias diferentes, em lugares diferentes, com pessoas diferentes. O nome da franquia, embora atraia atenção, também atrai a ira de fãs que esperam algo diferente. Se tivéssemos que escolher um lado, ficamos com o primeiro: o da experimentação corajosa.
Conclusão: Uma Nova Página com Ressalvas
Silent Hill f é, sem dúvida, uma nova página, complexa e ambígua, na história desta renomada série de horror. Ele merece a atenção de fãs de histórias psicológicas intrincadas e de quem aprecia estéticas incomuns. É fascinante de observar e se aprofundar. Contudo, essa nova página vem com uma condição: os frequentes e, por vezes, cansativos combates.
Esta é a parte que a Konami ainda precisa aprimorar, pois atualmente é um dos elementos mais controversos e fracos do título. Com uma dinâmica que pode parecer “emperrada”, inimigos nem sempre legíveis e um design de jogo que, para alguns, pode soar datado, o sistema de combate pode afastar veteranos da série e decepcionar amantes de jogos hardcore. Tirando isso, a direção que a franquia revitalizada está tomando é promissora, e uma próxima parte daqui a um ano seria bem-vinda. Afinal, é sempre melhor do que máquinas de pachinko ou séries interativas online, não é mesmo?
Um experimento brilhante, sangrento e cativante que se sustentaria até mesmo sem o nome da famosa série, mas que, ao invés disso, se torna um novo capítulo em sua evolução. Apenas o sistema de combate precisaria de um retoque; ele é mais assustador do que qualquer monstro.